TRADUÇÃO E CRIAÇÃO LITERÁRIA NA AMÉRICA LATINA:
O caso Borges
Profª. Drª. Patrícia Lessa Flores da Cunha
PPG Letras- Instituto de Letras, UFRGS
Os aportes teóricos mais recentes advindos das teorias desconstrutivistas e da recepção, da leitura e da produtividade do texto, bem como as relevantes contribuições da pesquisa lingüística, nas suas variantes discursivas e semióticas, ao lado dos novos enfoques da história e geografia das culturas, têm agudizado questionamentos e reflexões que permitem a inserção das questões de tradução nas vertentes das práticas interdisciplinares dos estudos culturais.
Tradicionalmente vista como uma atividade mimética, a tradução agora transcende as noções formais da equivalência, da literalidade e da fidedignidade para, na esfera da cultura, estabelecer relações dialéticas entre espaço e tempo, entre nós e eles. Nesse contexto expansivo, avulta o reconhecimento dos processos de diferença cultural, em que reside o “espaço do novo”, intersticial, que, na visão descentrada de Homi Bhabha e Edward Said, entre outros, elide as transações impostas por fronteiras e limites convencionais.
Bem a propósito, Susan Bassnett denominou essa mudança de ênfase - da base essencialmente lingüística para a da relação contextual - como a “vez do cultural” nos atuais Estudos de Tradução.
A noção cada vez mais incontestada de que o valor - seja estético ou material - é determinado pela cultura torna-se particularmente relevante, se percebermos que tanto os estudos de tradução quanto os estudos culturais se inter-relacionam, no tocante às discussões contemporâneas sobre poder e modos de produção. Entre outras particularidades, ambos reconhecem a importância dos processos de manipulação a que se atrela a produção textual, encarada agora em seu sentido mais amplo; ambos se configuram como campos de investigação precipuamente interdisciplinares, instalados de modo fecundo no escopo dos chamados estudos pós-coloniais.
É nessa dimensão que os propalados conceitos de “tradução cultural” e/ou “transferência intercultural” e, em certa medida, “tradução como reescritura”, apresentam-se sobremodo operacionais e instigantes, na medida em que eventualmente se preocupam com o modo de ser de outras culturas naquilo que lhes é íntriseco e original, e assim lêem e expressam o que, muitas vezes, nelas está implícito.
O fato de privilegiar as fronteiras entre o traduzível e o intraduzível, o dito e o não-dito, na consecução de sua peculiar experiência, transforma a tradução em paradigma, agora essencial, à tentativa de explicar os processos de apropriação, integração, deformação, assimilação do Outro, expresso nas suas múltiplas e variadas ocorrências. Não obstante, esse empreendimento não raro se frustra por estratégias sutis que ou tornam estranho o familiar, ou domesticam/familiarizam o exótico.
Se ler outras culturas equivale a ler o que está subtendido na cultura estrangeira, a “tradução cultural” supõe a construção de um texto paradoxalmente (sub)vertido-“a força dessa tradução radica no fato de que a descoberta do implícito se leva a cabo não apenas no texto de origem como no de destino”. (OVIDI I CARBONELL,1997, p.144)
Nesse sentido, entende-se também a afirmação singular de Haroldo de Campos, quando propõe substancialmente repensar a tradução literária como fantasia, como ficção, ao especular: “Se o poeta é um fingidor, o tradutor é um transfingidor”. Pois é através das possibilidades da transcriação artística, na sua maneira de lidar com as perdas e danos intrínsecos ao ato tradutório, que se viabiliza a permanência do texto literário, em sua condição de traduzibilidade essencialmente histórica. (Mais uma vez lembrando Benjamin, “a tradução é apenas um modo algo provisório de discutir com a estranheza das línguas”.)
Frente a essas idéias, é possível examinar o papel da tradução na obra de escritores brasileiros e latino-americanos, sob a perspectiva de uma relação transcultural que lhe é inerente, decorrente de sua condição histórica e intrínseca capacidade intertextual. Dentre esses, destacamos Machado de Assis, Monteiro Lobato, Erico Veríssimo e Jorge Luis Borges, objetos de nossas pesquisas mais recentes.
Na realização de seu empreendimento ficcional, o escritor-tradutor atualiza mais que nunca a percepção crítica presente na atividade tradutória, e já referida por Paul de Man, na medida em que revela outros e novos enfoques sobre as realidades mesmas. Em muitos aspectos, os tradutores-escritores “constróem” uma poética de tradução que dialoga, quando não raro alimenta, os seus escritos ficcionais.
O caso a ser aqui referido, máxime talvez da contemporaneidade de todas essas especulações, é a ficção-crítica de Jorge Luis Borges, que, segundo o próprio autor, realiza a literatura como tradução – “es consubstancial con las letras y con su modesto misterio/ no problem is as consubstantial to literature and its modest mistery as the one posed by translation”. (BORGES, 1999) Borges reconhece no fazer tradutório uma autonomia ficccional específica, o que lhe confere qualidade literária singular.¹
Para muitos de seus críticos, raramente Borges se apresenta em seus contos como o inventor de uma estória; antes, recebe-a, escuta-a, ou a lê, como se fora dela o destinatário (ou tradutor?) Sua narração implica certa idéia de empréstimo, “adoção tardia”, em que toma para si o encargo de uma estória alheia, estrangeira, recuperando-a, no entanto, com todas as suas marcas de alteridade. Marca textual dessa intenção seria a maneira borgiana de, freqüentemente, começar um relato, recriando a atmosfera de uma fantasia alheia:
“Em Trieste, no ano de 1872, num palácio com estátuas úmidas e instalações sanitárias deficientes, um cavalheiro com o rosto marcado por uma cicatriz africana – o capitão Richard Francis Burton, cônsul inglês - começou uma famosa tradução do Quitab alif laila ua laila, livro que também os rumis chamam das 1001 Noites.” (BORGES, 1982, p. 77)
Essa relação entre “imitação/plágio” e “originalidade/autoridade” remete, sem dúvida, às sempiternas questões da tradução, oscilando entre fidelidade e recriação, e é dada como característica essencial da obra borgiana- sendo assim, não deixa de ser sintomático que o primeiro trabalho publicado (1910), no jornal portenho El País, do muito jovem Borges tenha sido uma tradução- “El Príncipe Feliz”- do conto de Oscar Wilde.
Do ponto de vista de nossa breve reflexão crítica, é sobretudo a partir das teses formuladas em “Os Tradutores das 1001 Noites” que a obra de Borges, ancorada na experiência subjetiva do bilingüismo, justifica a realização de um contínuo indistinto de registros narrativos, onde personagens pretensamente subalternos – tradutores, exegetas, copiadores, intérpretes, bibliotecários, bem como gauchos e cuchilleros – dominam a cena, questionando, em cada eventual traição, a literalidade daqueles.
Por outro lado, em várias de suas formulações críticas, repetidamente Borges reconhece “las dos maneras de traducir”. Uma seria a prática da literalidade, a outra a da perífrase; a primeira corresponderia às mentalidades românticas, a segunda às clássicas. Na visão de Borges, aos clássicos interessaria sobretudo a obra de arte, o “tejido”; jamais o artista e, por extensão, nem seu contexto. Ao contrário, o espírito romântico solicitaria sempre a presença do indivíduo, “el hombre”.
Para Borges, a reverência ao eu justificaria, em parte, a literalidade nas traduções, que ademais implicaria a presença de “lo lejano, lo forastero”, o que é sempre, para o leitor, magia e “belleza”. E explica:
“Las traduciones literales no sólo conducen a la zafiedad y la extravagancia, como señalaba Mathew Arnold, sino también a la novedad y la belleza...Esto nos plantea un interesante problema: una traducción literal ha creado una belleza própria, sólo suya.”(BORGES, 2001, p.85)
No entanto, acrescenta, em outra de suas especulações, a idéia de tradução literal, que concebe como uma metáfora “muy extendida”, podendo inclusive existir nos limites de uma mesma língua, é, em si mesma, um paradoxo, eis que uma tradução não “puede ser fiel al original... letra por letra”. Por isso mesmo, essa (im)possibilidade frustraria o trabalho do tradutor diante de tal expectativa de sua obra:
“Gustación de la lejania, viaje casero por el tiempo y por el espacio, vestuario de destinos ajenos, nos son prometidos por las traslaciones literarias de obras antiguas: promesa que suele quedarse en el prólogo. El anunciado propósito de veracidad hace del traductor un falsario, pues este, para mantener la extrañez de lo que traduce se ve obligado a espesar el color local, a encrudecer las crudezas, a empalagar con las dulzuras y a enfatizarlo todo hasta la mentira.” (BORGES, 1997, p.258)
A segunda maneira de traduzir, para Borges, estaria mais conforme a uma tradição que remontaria à Idade Média; buscaria a perfeição estética absoluta, desdenhando de localismos, “rarezas” e contigências. Não seria mera transposição literal, mas refletiria o trabalho do poeta que, tendo lido uma obra, “la desarrollaba luego a su ser, según sus fuerzas y las posibilidades hasta entonces conocidas de su lengua”. (BORGES, 1997, p.91)
Concebendo a tradução como metáfora de um fazer literário, Borges anuncia:
“ Llegará un día en el que a los hombres les importen poco los accidentes y las circunstancias de la belleza; les importará la belleza misma. Puede que ni siquiera les interesen los nombres ni las biografias de los poetas...Entonces tendremos traducciones no sólo tan buenas (las tenemos ya) como tan famosas, como el Homero de Chapman, el Rabelais de Urqhart, la Odisea de Pope. Creo que éste es un punto culminante digno de ser deseado con devoción.” (BORGES, 1997, p.94-95)
Apesar de eventuais afinidades e simpatias, Borges não estabelece noção de valor ao considerar as duas traduções citadas; no entanto assinala a sua diferença, entre elas e com o original.² E diz: “La diferencia está mas allá de las posibilidades del traductor; depende, más bien, de la manera en que leemos poesía.” (BORGES, 2001, p.81)
Em seu “Credo de Poeta”, é sabido que Borges se assume paradigmaticamente como um leitor:
“Me considero esencialmente un lector. Como saben ustedes, me he atrevido a escribir; pero creo que lo que he leído es mucho más importante que lo he escrito. Pues uno lee lo que quiere, pero no escribe lo que quisiera, sino lo que puede.” (BORGES, 2001, p.119)
Lendo, traduzindo, escrevendo, a poética borgeana, de modo peculiar, preserva o espírito da translatio: fazer ficção é transportar de seu contexto um material já existente para inseri-lo em outro, diferente, novo. Nesse movimento pleno de manipulação, considera o parasitismo e a subordinação, a leitura e sua glosa, a desestabilização das hierarquias e sistematizações, a relação entre o mesmo e o outro, a repetição e a diferença, o próprio e o alheio; para Borges, a literatura só tem sentido quando se move, se desenraiza, coloca em risco sua integridade.³
Assim como os demais escritores-tradutores, em parte graças aos influxos da prática tradutória, Borges permanecerá como escritor universal, ao transformar o legado da tradição literária, belo e contingente como uma tradução, num mundo todo seu, arriscando-se assim na criação de um universo ficcional próprio.
NOTAS
¹“For Borges, translation was a means to enrich a literary work or a literary idea… It informs his ideas about literature and his creative process”. KRISTEL, E. Introduction. In: __________. Invisible work. Borges and translation. Nashville: Vanderbilt University Press, 2002. p.XVI.
² “For Borges, as for Sterne, a translation can bring to light aspects of a work that may be lost on a reader of a original”. KRISTEL, E. Op. cit. p.8.
³ “Leer, glosar, reseñar y traducir son sólo algunas formas evidentes del parasitismo”. HELFT, N. & PAULS, A . Segunda Mano. In: ____________. El factor Borges. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2000. p.112.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASSNETT, S. & LEVEFERE, A. Constructing cultures. Essays on literary translation. Clevedon: Cromwell Press, 1998.
BORGES, J. L. Las Dos Maneras de Traducir. In: _________. Textos recobrados. Buenos Aires: Emecé Editores, 1997. p.256-259.
____________. La Música de las Palabras y la Traducción. In: MIHAILESCU, C.-A . (org.). Arte poética. Seis conferencias. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. p. 75-95.
____________. Credo de Poeta. In: MIHAILESCU, C.- A . (org.). Op. Cit. p. 119-145.
_____________. Os Tradutores das 1001 Noites. In: ___________. História da eternidade. Porto Alegre: Editora Globo, 1982. p. 75-95. Col. Sagitário. Trad. Carmen Vera Cirne Lima.
___________. The Homeric Versions. In: WEINBERGER, E. (org.) Selected non-fictions. New York: Penguin, 1999.
CAMPOS, H. de. Tradução e Reconfiguração: O Tradutor como Transfingidor. In: COULTHARD, M. & CALDAS-COULTHARD, C.R. (orgs.). Tradução: teoria e prática. Florianópolis: EDUFSC, 1991. p.17-31.
CARBONELL I CORTÉS, O. Traducir al otro. Traducción, exotismo, poscolonialismo. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 1997. 213p.
HELFT, N. & PAULS, A . Segunda Mano. In: ____________. El factor Borges. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2000. p.103-124.
KRISTEL, E. Introduction. In: __________. Invisible work. Borges and translation. Nashville: Vanderbilt University Press, 2002.
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