domingo, 18 de abril de 2010

Contribuição da Profa. Dra. Léa Masina

"...Seguem algumas reflexões de Ricardo Piglia, a respeito dos leitores e da percepção borgiana da leitura... Tenho certeza de que gostarão e irão se preparando ainda mais para ouvir e falar sobre Borges no dia 24!"

Léa Masina



RICARDO PIGLIA, O ÚLTIMO LEITOR

Um dos leitores mais convincentes que conhecemos, a respeito de quem podemos imaginar que perdeu a visão lendo, tenta, apesar de tudo, prosseguir. Essa poderia ser a primeira imagem do último leitor, aquele que passou a vida inteira lendo, aquele que queimou os olhos na luz da lâmpada. “Agora sou um leitor de páginas que meus olhos já não vêem”.

Há outros casos, e Borges os evocou como se fossem seus antepassados (Mármol, Groussac, Milton). Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor. (...) Em Borges, a leitura é uma arte da distância e da escala”.

Kafka via a literatura do mesmo modo. Numa carta para Felice Bauer, define assim a leitura de seu primeiro livro: “ Realmente, há nele uma incurável desordem, e é preciso aproximar-se muito para ver alguma coisa”.

Primeira questão: a leitura é uma arte da microscopia, da perspectiva e do espaço (não só os pintores se ocupam dessas coisas). Segunda questão: a leitura é coisa de ótica, de luz, uma dimensão da física.

O leitor moderno (...) vive num mundo de signos; está rodeado de palavras impressas (...). O leitor viciado, o que não consegue deixar de ler, e o leitor insone, o que está sempre desperto, são representações extremas do que significa ler um texto, personificações narrativas da complexa presença do leitor na literatura. Eu os chamaria de leitores puros; para eles, a leitura não é apenas uma prática, mas uma forma de vida.

Literatura e sonho: no excesso, é possível entrever um pouco da verdade da prática da leitura; seu avesso, sua zona secreta: os usos desviados, a leitura fora do lugar. Talvez o exemplo mais nítido desse modo de ler esteja no sonho ( nos livros que se lêem nos sonhos). [“alguma vez, você já sonhou que estava lendo ? Com que velocidade você lê em seus sonhos?]

Há uma relação entre a leitura e o real porque também há uma relação entre a leitura e os sonhos, e nesse duplo vínculo, (...) tramam-se as histórias. Há romances (Joyce, Cervantes) que procuram seus temas na realidade, mas entram nos sonhos de um modo de ler. Essa leitura noturna define um tipo particular de leitor, o visionário, o que lê para saber como viver.

A pergunta “o que é um leitor?” é, sem sombra de dúvida, a pergunta da literatura. Essa pergunta a constitui , não é externa a si mesma, é sua condição de existência. E a resposta a essa pergunta – para benefício de todos nós, leitores imperfeitos porém reais – é um texto: inquietante, singular e sempre diverso.

Os rastros de “Tlon” : sempre existe algo de inquietante, ao mesmo tempo estranho e familiar, na imagem concentrada de alguém que lê, uma misteriosa intensidade que a literatura fixou inúmeras vezes. O sujeito se isolou, parece separado do real.

A vida não se detém, somente se separa daquele que lê, segue seu curso. Há um certo desajuste que, paradoxalmente, a leitura viria exprimir. O leitor inventado por Borges se instala nesse espaço. Borges inventa o leitor como herói a partir do espaço que se abre entre a letra e a vida e esse leitor (que freqüentemente afirma chamar-se Borges, mas que também pode chamar-se Pierre Menard ou Hermann Soergel ou ser o anônimo bibliotecário aposentado de “O livro de Areia”) é um dos personagens mais memoráveis da literatura contemporânea. E o mais trágico.

“Tlon. Uqbar, Orbis Tertius” começa com um texto perdido, um artigo da enciclopédia; alguém o leu, mas não consegue mais encontra-lo. O que irrompe não é o real, mas a ausência, um texto que não se tem e cuja busca leva, como num sonho, ao encontro de outra realidade. A falta é imediatamente assimilada ao que foi subtraído. Há nisso um quê político, que remete ao complô, a uma lógica cruel e sigilosa que altera a ordem do mundo. Alguém está de posse do que falta, alguém o apagou. Não é um enigma, nem um mistério; é um segredo, no sentido etimológico (scernere significa “por à parte”, “ esconder”).

No caso de Borges, o imaginário se instala entre os livros, surge em meio à sucessão simétrica de volumes alinhados nas estantes silenciosas de uma biblioteca. “A certeza de que tudo está escrito nos anula e nos transforma em fantasmas”, escreve Borges.

Nesse universo saturado de livros, em que tudo está escrito, só é possível reler, ler de outro modo. Por isso, uma das chaves desse leitor inventado por Borges é a liberdade no uso dos textos, a disposição para ler segundo o interesse e a necessidade. Uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossíveis. A marca dessa autonomia absoluta do leitor em Borges é o efeito de ficção produzido pela leitura. (...) Em Borges, não se lê a ficção como mais real do que o real, mas o real perturbado e contaminado pela ficção.

3 comentários:

Bípede Falante disse...

Interessantíssimo texto!

Almeri Souza disse...

Professora Lea, desejo contatar com você.
e-mail: maosaobraliteraria@ig.com.br

Obrigada
Almeri

Almeri Souza disse...

Professora Lea, desejo contatar com você.
e-mail: maosaobraliteraria@ig.com.br

Obrigada
Almeri