Crime e Castigo, na edição da Editora 34, tem tradução direta do russo, por Paulo Bezerra, e edição atualizada em 2009, pelo acordo ortográfico.
Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional de Melhor Tradução 2002.
Sobre o tradutor:Paulo Bezerra estudou língua e literatura russa na Universidade Lomonóssov, em Moscou, e foi professor de teoria da literatura na UERJ e de língua e literatura russa na USP. Livre-docente em Letras, leciona atualmente na Universidade Federal Fluminense. Já verteu diretamente do russo mais de quarenta obras nos campos da filosofia, psicologia, teoria literária e ficção, destacando-se suas premiadas traduções de Crime e castigo, O idiota e Os demônios, de Dostoiévski. Entrevista com o tradutor Paulo Bezerra no link:
http://www.ufmg.br/boletim/bol1442/sexta.shtml__________________________
Coleção L&PM POCKET
Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes.
Leia um trecho do livro no site da L&PM Editores
___________________________
"No começo dos anos 80, li Crime e Castigo, de Dostoievski, pela primeira vez. A Abril Cultural, àquela época, estava lançando a série “Obras-Primas” em edições caprichadíssimas quanto a capas, papel, lombada, tudo de primeira, e muito barato. A tradução era de Natália Nunes (a mesma que consta das Obras Completas pela Aguilar).
Em 2001, pela editora 34 apareceu a tradução de Paulo Bezerra, ao que consta a única direta do russo.
Entre uma e outra (“biquei” também nas minhas diversas e fragmentadas voltas ao livro a tradução de Luiz Cláudio de Castro, que saiu pela Ediouro), descobri nos sebos a edição que a José Olympio fez das obras de Dostoievski e creio que ali encontrei o “meu” Crime e Castigo, o de Rosário Fusco (sua tradução foi publicada, em primeira edição, em 1949; tenho a edição de 1955, onde não se modernizara ainda a transcrição dos nomes russos, eles estão todos à francesa; mais tarde, em edições posteriores, Guimarães Rosa supervisionou a nova transcrição).
Quem é Rosário Fusco? Um grande nome do modernismo mineiro (nasceu em 1910 e morreu em 1976), membro do grupo que em Cataguazes manteve a revista “Verde”. Como ele está praticamente esquecido, ainda mais com esse nome exótico, devo dizer que só soube mais da sua existência e da sua obra quando estava estudando o modernismo mineiro para minha tese de doutorado sobre Autran Dourado. Há um capítulo nela chamado “O tamanho mineiro do modernismo”, em que estudo textos de Godofredo Rangel, João Alphonsus e Cyro dos Anjos e também comento algo a respeito de Fusco e Afonso Arinos. Para mim, durante anos, Fusco foi única e exclusivamente o esplêndido tradutor de nome insólito de Crime e Castigo. Na época em que escrevia a minha tese (final dos anos 90 e começo desta nossa década) era ainda muito refratário à Internet, praticamente não a utilizava, e meu método de pesquisa era muito pouco ortodoxo, um pouco guiado pela “música do acaso”. E essa música me fez encontrar, na biblioteca da escola onde dava aula, justamente um exemplar de O Agressor, de Fusco, numa obscura edição de 1976 da Francisco Alves. Um romance aliás todo dostoievskiano, mostrando a tensão crescente entre o protagonista David e uma dona de pensão autoritária, “disciplinadora”. Também li por essa época a obra de João Alphonsus e um de seus contos, O Mensageiro, apresenta o mesmo tipo de embate, com as mesmas características raskólnikovianas de oscilação entre o sentimento de onipotência e o auto-rebaixamento.
Sei que vou espantar e decepcionar os puristas e adeptos de traduções vertidas diretamente do original, mas a tradução feita do francês do grande escritor mineiro é, para mim, a que melhor capta o espírito, mais que a letra, do romance mais famoso do grande autor russo. Há algo na cadência febril do estilo de Fusco, algo na sua fuliginosidade, que o aproxima mais do texto do que todos os esforços, mais que louváveis, decerto, do grande Paulo Bezerra (diga-se de passagem, é bom que ambas as versões existam).
Pois bem, após o começo dos anos 80, meu Raskólnikov se tornou mais Fusco, e a Abril Cultural virou a Nova Cultural e foi aquela decadência… Eles volta e meia relançavam a série “Obras-Primas” mas sempre em edições progressivamente pioradas. A última versão então apresentava traduções suspeitíssimas assinadas por nomes que eu duvido que existam (ficamos menos crédulos e mais espertos graças à persistência e disciplina de Denise Bottman e seu site Não gosto de plágio). A última edição de Crime e Castigo apresentava outro deslize grave: ali não constava o nome do tradutor.
Agora em 2010, passando por uma banca, vi que tinham novamente lançado a série. Pensei: mais um ato de picaretagem. Mas resolvi arriscar (afinal, R$14,90!) e qual não foi a minha surpresa ao ver que, além da qualidade, dessa vez resgataram a tradução de Rosário Fusco. Eis o motivo desse meu post. Acho é um texto que faz parte do nosso patrimônio cultural, e que não poderia ficar soterrado pelas areias do tempo. É uma grande tradução, que acerta o centro, o coração do lusco-fusco em que se movimentam os tipos dostoievkianos.
Para o leitor ter uma idéia de cada uma das quatro traduções, e ver qual a que mais o atrai, vou transcrever o início de cada uma delas.
A de Rosário Fusco começa assim:
“Numa dessas tardes mais quentes dos princípios de julho, um rapaz saía do pequeno quarto que alugara, no Beco S., dirigindo-se, o passo tardo, vacilante, para a ponte K. Teve sorte de não encontrar, na escada, a senhoria.
A água-furtada fica no alto de uma casa enorme, de cinco andares, e parecia mais um armário do que um cômodo habitável. A criatura que lhe alugara o cubículo, com comida e serviço de empregada, morava, justamente, logo embaixo de maneira que era obrigado, cada vez que saísse, a passar pela frente da respectiva cozinha, cuja porta, geralmente escancarada, dava para a escada. Nessa ocasião, sua expressão se contraía e vinha-lhe, sempre, aquela vaga sensação mórbida de pavor que o humilhava…”
A de Natália Nunes:
“Nos começos de julho, por um tempo extremamente quente, saía um rapaz de um cubículo alugado, na travessa de S., e, caminhando devagar, dirigia-se à ponte de K.
Discretamente, evitou encontrar-se com a dona da casa na escada. O tugúrio em que vivia ficava precisamente debaixo do telhado de uma alta casa de cinco andares e parecia mais um armário do que um quarto. A mulher que lho alugava, com refeição completa, vivia no andar logo abaixo, e por isso, quando o rapaz saía tinha de passar fatalmente diante da porta da cozinha, quase sempre aberta de par em par sobre o patamar.E todas as vezes que procedia assim sentia uma mórbida impressão de covardia, que o envergonhava e o fazia franzir o sobrolho.”
A de Luiz Cláudio de Castro:
“Em um maravilhoso entardecer de julho, extraordinariamente cálido, um rapaz deixou o quarto que ocupava no sótão de um vasto edifício de cinco andares no bairro de S., e, lentamente, com ar indeciso, se encaminhou para a ponte de K.
Teve a felicidade, ao descer, de não encontrar a senhoria, que morava no andar inferior. A cozinha, cuja porta estava sempre escancarada, dava para as escadas. Sempre que se ausentava, via-se o moço na contingência de afrontar as baterias do inimigo, o que o fazia passar pela forte sensação de quem se evade, que o humilhava e lhe carregava o sobrecenho.”
A de Paulo Bezerra:
“No cair da tarde de um início de julho, calor extremo, um jovem deixou o cubículo que subalugava de inquilinos na travessa S, ganhou a rua e, ar meio indeciso, caminhou a passos lentos em direção à ponte K.
Saiu-se bem, evitando encontrar a senhoria na escada. Seu cubículo ficava bem debaixo do telhado de um alto prédio de cinco andares, e mais parecia um armário que um apartamento. Já a senhoria, de quem ele subalugava o cubículo com cama e mesa, ocupava um apartamento individual um lanço de escada abaixo, e toda vez que ele saía para a rua tinha de lhe passar forçosamente ao lado da cozinha, quase sempre de porta escancarada para a escada. E cada vez que passava ao lado, o jovem experimentava uma sensação mórbida e covarde, que o envergonhava e levava a franzir o cenho.”
Só uma observação: a tradução de Luiz Cláudio de Castro erra feio em usar termos como “maravilhoso” e “cálido” para esse entardecer de julho, uma vez que logo a seguir Dostoievski se esmera em dar um retrato quase apocalíptico do verão de São Petersburgo, no qual só encontramos os pobres, muitos deles embriagados, porque os endinheirados deixaram a cidade para suas residências de verão, fugindo do mau cheiro pestilento. Por isso, é muito difícil que, num lugar assim, o entardecer fosse “maravilhoso” e “extraordinariamente cálido”. É um lugar de pesadelo, apropriado para a andança febril do protagonista."
Nota: Foram expostos aqui alguns depoimentos e considerações sobre aspectos das traduções de 'Crime e Castigo". A Equipe do blog http://www.leiturascomlea.blogspot.com agradecerá sugestões e discussões sobre o tema desta postagem. Assim, aguardaremos comentários e a participação dos visitantes deste espaço, sembre bem-vindos.